quinta-feira, 30 de julho de 2009

UMA EDUCAÇÃO SOCIAL FAZ SENTIDO? ALGUNS APONTAMENTOS

Quando Kant (1996) afirma, no século XVIII, que o homem não chega a ser homem a não ser através da educação, está, de um lado, confirmando a natureza social do processo de formação humana, ou de hominização, como diria Paulo Freire (1981). De outro, está ocultando, em uma pretensa universalidade do conceito homem, as condições existenciais – materiais, subjetivas, culturais, históricas – concretas em que homens e mulheres se constituem humanos, tanto em sua época, como na atual sociedade neoliberal globalizada.Assim, se o processo de formação humana é de natureza social, como se poderia falar de uma educação social? Não seria esta qualificação do substantivo educação uma redundância ou mesmo uma redução da responsabilidade do social, tornado adjetivo pela educação substantivada?Essas indagações emergem de uma proposta de tese e começam a produzir reflexões, inicialmente, sob a forma de apontamentos, objetivo deste texto. Esses primeiros apontamentos respondem à solicitação do Educador Jorge Camors, para colaborar com o debate, numa Oficina Pedagógica oferecida pela Asociación Internacional de Educadores Sociales (AIEJI/ Montevideo – Uruguai).
A questão sobre uma (im)possível educação social é muito mais complexa do que aparentemente se mostra, uma vez que oculta a contradição que sustenta a sua unidade dialética precária porque contraditória (KOSIK, 1976), cuja fragilidade/força deve-se às disputas de projetos sociais – de classes antagônicas – que no seu interior se travam; essa disputa por hegemonia na sociedade e na educação pode ser visualizada pelo acréscimo do “social” a esta última, carregado de sentidos.Localizando a educação na história do capitalismo, vemos que a mesma separa-se do trabalho produtivo e desloca-se da família para a escola, sob o controle do Estado, estendendo-se a escolarização pública como um direito do cidadão e dever do Estado (BUFFA, ARROYO, NOSELLA, 1995), no século XX, no interior de processos revolucionários que conquistaram, nos países europeus, o Estado do Bem-Estar (RIBEIRO, 1997). O esgotamento deste modelo de Estado, a partir da crise do petróleo (1973) ou do processo de acumulação de capital, permite que forças sociais conservadoras possam impor uma política exclusiva de mercado (neoliberalismo), que produz um movimento de devolução da responsabilidade sobre a formação do cidadão para a sociedade civil e a família, que deverão preparar o consumidor “apto” a buscar serviços no mercado e/ou a responsabilizar-se pela sua própria qualificação e “empregabilidade” (RIBEIRO, FERRARO, VERONEZ, 2001).
Como fica a educação das camadas populares, que aumentam em decorrência do desemprego estrutural e tecnológico, que não possuem meios para comprar serviços, e que devem ser mantidas sob controle para evitar o acirramento das tensões sociais? Como trabalhar com jovens e adultos para os quais não se tem como oferecer a perspectiva de emprego e, conseqüentemente, de alimentar seus sonhos de autonomia e de constituição de uma família?Nessa direção podem ser analisadas as iniciativas de Organizações Não-Governamentais, bem como de instituições públicas, de desenvolver políticas compensatórias de formação para crianças e jovens das classes populares em situação de vulnerabilidade, visando oferecer alternativas de reinserção ou inclusão social. A análise destas inciativas e seus objetivos, por si só, constituíria um trabalho bem extenso que me afastaria dos propósitos do texto. Assim, vou dirigir meu foco para os movimentos sociais do campo, em especial o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que tanto estão construindo e colocando em prática um projeto popular popular alternativo de mudanças quanto, nesse processo, elaboram uma proposta diferenciada de Pedagogia Social.Embora sem designá-la propriamente como educação social, a proposta educativa sistematizada e colocada em prática pelo MST, especialmente a Pedagogia da Terra, que vem sendo desenvolvida em articulação com o Instituto de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (ITERRA), sustenta-se sobre a concepção de pedagogia socialista, produzida nos movimentos revolucionários europeus, que culminaram com a Revolução Russa, onde esta concepção foi testada e produziu outras propostas (ITERRA, 2001; 2002). Sua perspectiva é a formação omnilateral, tendo por eixo a relação entre produção/socialização/transmissão do conhecimento e a realização do trabalho produtivo, de caráter social, contrapondo-se a uma instrução unilateral para um trabalho abstrato, decorrente da divisão social do trabalho no capitalismo.
Os educadores-pesquisadores do MST recriam a pedagogia da alternância, de origem francesa (ARCAFAR, 2002), tendo em vista a realidade brasileira e os princípios do Movimento, de modo a formar pessoas – profissionais/educadores – inseridos nas e comprometidos com as suas comunidades de origem, que os indicaram para a formação. Nesse sentido, os tempos educativos articulam-se em tempo-escola e tempo-comunidade, tendo por eixo o trabalho social. Os educandos, por sua vez, divididos em pequenos grupos ou núcleos de base, responsabilizam-se por todos os trabalhos relacionados à sua sobrevivência, ao mesmo tempo em que participam, enquanto sujeitos, da construção e implementação da proposta de formação de educadores sociais.Assim, o que nomeio como Pedagogia Social do MST orienta-se pelo pensamento pedagógico socialista, com destaque para as obras de Pistrak (1981) e Makarenko (s/d). Principalmente a experiência deste último pensador, desenvolvida na Ucrânia com jovens marginalizados, em que associa o trabalho com a terra à formação omnilateral, é usada para orientar as práticas e concepções de formação que se desenvolvem no ITERRA. Como Pedagogia Social recorre, ainda, ao compromisso social e à originalidade do pensamento do educador brasileiro Paulo Freire, cujas obras refletem suas experiências e reflexões sobre a educação das camadas populares como uma educação emancipatória e transformadora.Referindo-se à produção social enquanto resultado do trabalho humano de homens e mulheres, o Movimento sinaliza para uma educação social na perspectiva de construção dos valores da cooperação, da solidariedade, da emancipação humana, que sustentam um projeto social popular pelo qual sempre lutou Paulo Freire. Se, como sempre afirmou este educador, não há transformação social que não implique um projeto popular de educação, a proposta que o MST vem colocando em prática também está respaldada na experiência de Lênin (1977) e na obra de Gramsci (s/d) para quem é preciso construir um novo senso comum, uma nova cultura de emancipação humana.Muito mais se poderia dizer sobre a riqueza destas experiências, mas fico por aqui na expectativa de que este texto seja procriador de novas questões, que venham a contribuir para o enriquecimento da proposta dos trabalhadores e trabalhadores que lutam pela terra de trabalho social e, em vista disso, elegem a educação social como uma de suas prioridades. É sob esta ótica que a educação social – enquanto proposta dos, com e para os movimentos sociais populares – parece fazer sentido ou criar novos sentidos...
Referências BibliográficasARCAFAR, Casas Familiares Rurais. Barracão/PR, 2002. Documento Inédito. 34 p.BUFFA, Esther; ARROYO, Miguel G.; NOSELLA, Paolo. Educação e Cidadania: quem educa o cidadão? 5. ed. São Paulo: Cortez, 1995.FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.ITERRA. Projeto Pedagógico. In: Cadernos do Iterra. nº 2. Veranópolis/RS, mai., 2001.ITERRA. Pedagogia da Terra. In: Cadernos do Iterra. nº 6. Veranopólis/RS, dez. , 2002.KANT, Emmanuel. Réflexions sur L’Éducation. Paris: J. Vrin, 1996.KOSIK, Karel. Dialética do Concreto, 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.LÊNIN, Vladimir I. Sobre a Educação. Lisboa: Seara Nova, 1977.MAKARENKO, Anton. Poema Pedagógico. Moscú. Ed. Progreso, s/d.PISTRAK. Fundamentos da Escola do Trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1981.RIBEIRO, Marlene.Trajetória da concepção da educação liberal: alguns traçados. In: Cadernos de Educação. nº 9. Pelotas/RS: FACED/UFPel, ago., dez., p. 155 – 184, 1997.RIBEIRO, Marlene; FERRARO, Alceu R.; VERONEZ, Luiz Fernando. Trabalho, educação e lazer: horizontes de cidadania possível. In: FERRARO, A. & RIBEIRO, M. Trabalho, Educação, Lazer: construindo políticas públicas. Pelotas/RS: EDUCAT, p. 15 – 50, 2001.Porto Alegre/RS – Brasil, 16 de abril de 2004.Pesquisadora com apoio do CNPq e da FAPERGS.Nair Casagrande.A Formação Humana (Omnilateral) do Educador Social no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Porto Alegre/RS. PPGEDU/UFRGS, 2004 (em processo).Uma análise do caráter contraditório da educação desenvolvida pelas ONGs vem sendo desenvolvido por Dileno Dustan Lucas de Souza, na sua tese Organizações Não-Governamentais: Um estudo de caso da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE). Porto Alegre: PPGEDU/UFRGS. Projeto defendido em 2003.
Fonte: http://www.ufrgs.br/tramse/perural/artigos/educacaosocial.rtf

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